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-Não se esqueça das luvas!


No dia 15 de maio de 1847, o médico húngaro Semmelweis fixou na porta de sua unidade hospitalar um cartaz que informava o seguinte: todo estudante ou médico, é obrigado, antes de entrar nas salas da clínica obstétrica, a lavar as mãos, com uma solução de ácido clórico, na bacia colocada na entrada. Esta disposição vigorará para todos, sem exceção.

Algo banal nos dias de hoje, na época foi um dos grandes avanços da medicina. Avanço que desencadeou no uso de luvas cirúrgicas de pano e posteriormente na substituição destas por luvas cirúrgicas de borracha. Mas a evolução da higienização das mão e do uso de luvas não se restringiu apenas à medicina. 

Com o progresso da tecnologia criminalística, cada vez mais delinquentes usam luvas para cometer delitos, sejam estes assassinatos ou furtos, afim de não deixarem impressões digitais. Hoje a luva cirúrgica de borracha é a mais popular entre os criminosos, pois diferente da luva de pano, esta possui qualidades mais práticas, como por exemplo, ser descartável, de baixo custo e vendida em farmácias de bairro.

Não à toa, a praticidade das luvas cirúrgicas tornou-se um ícone nos filmes de terror. Seja um médico, um assassino ou até mesmo um médico serial killer, a luva cirúrgica sempre está presente nas mãos do protagonista. Situações que fazem do látex uma extensão do corpo, tal qual uma segunda pele; confortável e maleável ao formato da mão de quem a veste, permitindo total liberdade ao movimento e sem tirar a sensibilidade do toque.

É infiltrada neste universo que a artista Gabriela Godoi apresentou a exposição O negativo como primário, em novembro de 2014, no Espaço Capsula. Uma exposição que em sua maioria constituía-se por pinturas, utilizando meios tridimensionais em poucas ocasiões, quase que de maneira pontual e indicativa para algumas telas. Trabalhos, que em sua totalidade, se relacionam por incitar a carne, a matéria, a morte, o grotesco e o sexual.

Fatias de presunto feitas com látex e sobrepostas umas as outras construíam camadas sintéticas de um corpo morto. Ao lado, uma pintura de pequeno formato incitava pernas se exercitando ao ar livre, tal qual galinhas prontas para o abate. Um díptico a óleo de dois pratos com ossos de coxas de frango recém comidas pousavam em outra parede. Não por acaso estes trabalhos se acercavam. Havia uma relação pulsante e grotesca entre aquele presunto, as pernas quase nuas das meninas e os ossos que descansavam sobre a louça branca.

No chão da galeria, duas mãos deformadas sobre papel alumínio davam a impressão de virem direto do forno. De imediato notava-se que elas não pertenciam a um mesmo corpo, isto é, um mesmo par de mãos. Cada mão apresentava uma tonalidade própria e tamanhos distintos. Elas só pertenceriam a um mesmo corpo se este fosse um monstro.

Na parede ao lado, dez pinturas foram dispostas no espaço sem seguir um padrão matemático ou ao menos uma estrutural com base em um alinhamento. São imagens de corpos, de objetos sepultados, de pesos mortos, de massas podres, de pessoas deformadas etc… Não há nada que trace um laço de sobriedade nesta parede que não passe por uma leitura que envolva vestígios de um transtorno mental.  

É para este universo obscuro entre ser um médico ou um serial killer que a artista nos abre a porta. Lembrando que antes de comer precisamos lavar as mãos, que antes de uma cirurgia usa-se luvas cirúrgicas de borracha e que o mesmo procede para um assassinato sem evidencias. São normas para uma boa educação e que previnem doenças. Mas por que não dizer que são meios que atuam como uma higienização da espécie?"

  Paula Borghi
janeiro de 2015

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