GABRIELA GODOI
Outro, si, mesmo.
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É cada vez mais evidente que a pintura feita nos dias de hoje está indissociável das técnicas digitais e on-line de produção de imagem. Por meio dos dispositivos eletrônicos conectados à internet, a pintura ganhou novas texturas, diversificou sua linguagem e ampliou os seus signos. O nosso olhar aprendeu um novo alfabeto complexo; transformando não só a pintura, mas também o modo como vemos as pinturas. O conjunto de imagens apresentado em Outro Si Mesma é reflexo direto dessa mudança.
O processo de transformação da nossa relação com a imagem parece ter se intensificado nos últimos meses, pois durante a pandemia de Covid-19 a atenção dos nossos olhares voltou-se ainda mais para as telas dos dispositivos. A produção e o consumo de imagens digitais aumentaram exponencialmente. É natural que a pintura realizada durante esse período carregue as consequências dessas mudanças no nosso comportamento.
Mas mesmo bem antes do surgimento da fotografia, o retrato – como gênero tradicional da pintura – já cumpria a função de nos mostrar o rosto das pessoas que estão longe tanto espacialmente, quanto temporalmente. Estamos agora olhando e sendo olhados a distância através de recursos imagéticos, mas essa possibilidade já tinha sido parcialmente dada, ainda que não em tempo real, desde que o retrato de uma pessoa (em uma tela, desenho ou gravura) pôde viajar de navio entre lugares distantes. Além de mostrar a pessoa distante, essas imagens nos revelam o cenário e o contexto em que ela está, normalmente o fundo da composição de um retrato. É interessante darmos atenção detalhada para essa ambientação, pois muitas vezes, mesmo que involuntariamente, ela é um elemento produtor de significado metafórico na composição de um retrato, como é o caso da live do atual ministro da economia em sua biblioteca completamente vazia de conteúdo. Assim, vejo coerência no modo como as pinturas expostas pela artista são mostradas no seu ateliê e apartamento. Além de cumprir com a nova norma social produzida pela pandemia, essa modalidade expográfica nos alimenta com a riqueza de detalhes e significados presentes nos ambientes. Juntamente às pinturas, vemos o cenário no qual foram realizadas as vídeo-chamadas que as originaram. E assim, em uma imagem temos dois ambientes em diálogo: o cenário fotografado e nele uma pintura que revela seu interlocutor em seu próprio e distante cenário. Entre superfícies bidimensionais (telas de dispositivos e telas de pintura) abre-se uma conexão espacial onde são compartilhados pontos de vistas. “As telas são a nova pele do mundo”, como resume Paul B. Preciado.
A maioria dos aplicativos de videoconferência nos dá um recurso parecido, pois conseguimos nos ver na mesma tela em que vemos o nosso interlocutor.
Em geral, as pessoas retratadas nas pinturas clássicas, quando não eram seres mitológicos ou divindades religiosas, eram personagens da nobreza imortalizadas pelos pintores da corte. Com a ascensão da burguesia no Renascimento e em diante, as pessoas nas pinturas passaram a ser qualquer um que dispunha dos meios para pagar um pintor para realizar seu retrato. Atualmente, para manter o distanciamento social, convivemos diariamente com a imagem dos nossos amigos, familiares, professores e a de nós mesmos. Novamente com um recorte social limitado à burguesia, pois o acesso aos recursos necessários também não é universal. A característica do nosso período é a de que fazemos simultaneamente o papel do pintor (produtor da imagem) e o do modelo (pessoa retratada). No caso, o que parece se sobressair nessa produção são essas duplas-relações de olhares, entre o si e o Outro. Esta é uma exposição que trata do potencial da amizade e do companheirismo. Como considera Giorgio Agamben, “o amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na ‘mesmidade’, um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu percebo a minha existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e deporta para o amigo para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si.
texto por Felipe Salem